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sexta-feira, agosto 12, 2005

Cabeça encostada no vidro do ônibus, pensamento longe. Túnel e luzes amareladas cortando o silêncio e a calma. Velocidade decomposta em fragmentos, subdividida em quilômetros por hora contra o cenário da cabeça encostada no vidro. A vida que tenta rumar adiante, mas o passado é sempre mais tentador numa hora dessas. Olhar adiante e esquecê-la é impossível, o ônibus avança e o passageiro não tem poder para recuar. Escolhe o pior caminho, destino possível, ficar parado. Bate com a cabeça no banco da frente.

Piscar

Por um momento piscar foi ver o mundo com os seus olhos, e descobri uma nova forma de enxergar os sentimentos, as coisas palpáveis, a distância entre a cadeira e a cama, meu amor e o seu; estar sob seus olhos por segundos foi o bastante para te amar muito mais depois que pisquei novamente e de novo estes meus olhos castanhos, cinzas, mas agora com um tom mais sereno, de outro matiz, e você dorme ao meu lado com uma réstia de olhos abertos e o verde, azul, amarelo, que escorrem deles espelham um sonho confuso e diminuto; me aproximo e seu sonho é uma criança correndo e abraçando meu pai, seus olhos refletem para o meu ver, e nele uma criança pequena, ainda mais cabeça que o resto do corpo, corre pelo nosso futuro apartamento atrás de uma bolinha de espuma e vejo tudo isso numa perspectiva de um olhar que roda pela sala e vai em outra direção; vejo o nosso filho, tem seu jeito, meu pai, e você beija este olhar; você dormindo reflete um sonho para os meus olhos abertos, e então entendo que talvez não tenha sido eu quem tenha entrado nos seu corpo por segundos, e tenha entendido um pouco mais sobre mim; você que entrou no meu corpo e, altruísta, externou meus próprios segredos sem roubá-los para ti. A ternura desta descoberta só me fez te amar mais, e menos tenho medo do futuro - mas ainda tenho muito; um sonho bom, filho, pai, me deixa uma réstia de felicidade que seus olhos piscando, o fim do sonho refletido, não destrói. Então você acorda sorrindo e te beijo, beijo, beijo, e você não precisa perguntar nada, jamais, pois o amor que meus olhos refletem é o seu, que conheces tão bem.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Escrever e escutar

Julian Fúks escreveu duas belas matérias na edição de sábado da Ilustrada, da Folha de São Paulo. Na capa, fez uma abertura de texto - sobre os diários de uma menina soviética na Era Stalin - linda, abusando da liberdade editorial que sem dúvida recebeu. Fugiu do esteriótipo do lide e conseguiu captar as dores e as inquietações de Nina Lugovskaia, a adolescente que escreveu o diário.


"Por quanto tempo pode uma adolescente, preso seu pai, furtar-se de confessar o ódio por aqueles que o prenderam? Por quanto tempo pode silenciar seus medos e aflições, embotados nos dedos e aglomerando-se na mente, diante da possibilidade de, a qualquer momento, pernas cobertas de botas invadirem sua porta, vasculharem sua casa, levarem também sua mãe, suas irmãs?
Nina Lugovskaia, uma garota soviética que viveu sob o regime de Stalin, não procurou sabê-lo. Na falta do pai, um preso político por oposição aos bolcheviques, na falta da mãe, que tinha de trabalhar o máximo que podia para sustentar as filhas, na falta das irmãs, preocupadas exclusivamente com música e meninos, Nina escreveu. Escreveu desenfreadamente, revelou amores e ódios, descreveu injustiças e hipocrisias, fez denúncias. Um inventário de dias e fatos, vidas e mortes, que agora vem à tona em edição brasileira, publicada pela Ediouro."

O texto inteiro aqui (para assinantes da Folha ou do UOL).

Adiante no caderno, o repórter brilhou não no texto, mas deixando o entrevistado, Autran Dourado, falar. Deficiência mais comum do que se imagina no jornalismo atual.

"Folha - O senhor diz que o escritor é um solitário, e é impossível não pensar em seus personagens, que são também solitários, tomados de medo e angústia.
Dourado - Meus personagens se parecem muito comigo. Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem. Não tenho nenhum prazer em escrever. Depois de pronta a obra, aí me dá uma certa satisfação, mas a mesma que dá quando se descarrega dos ombros um fardo pesado."

Outra resposta do Autran, divagando sobre uma pergunta bem aberta (erudição dos escritores):

"É por isso que vejo com certo escândalo o que está acontecendo no Brasil: pessoas jovens que se iniciam na literatura e querem logo vender livro. Têm vocação de best-seller. São fabricantes de livro, e o livro que você vê não resultou de nenhum esforço maior, não correu nenhum sangue por ele. Isso não é ser escritor. Vender livro é um acidente na vida de um escritor."

O link.

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